sábado, outubro 28, 2006

Diálogo sobre a Pátria

Diálogo sobre a Pátria

- Que é a Pátria?
- A Pátria é o conjunto dos grupos dominantes fixados num território.
- Quando é que um soldado defende a Pátria?
-Quando defende os interesses dos grupos dominantes.
- Quando é que o soldado morre pela Pátria?
- Quando, em defesa dos interesses dos grupos dominantes, é assassinado por homens que defendem interesses de outra Pátria (isto é: de outros grupos dominantes).
- A pátria é una e indivisível?
- Não. Os grupos dominantes têm interesses concorrentes e contraditórios que provocam dissenções entre eles. Logo a Pátria é plural e divisível.
- Que aspectos revestem esses interesses concorrentes? Isto é: que aspectos reveste o comportamento da Pátria?
- Três fundamentalmente: quando os interesses dos grupos dominantes fixados num território dado entram em conflito com interesses de outros grupos dominantes fixados em território diferente, diz-se que a Pátria está em guerra com uma potência estrangeira; quando os grupos dominantes dum território dado celebram entre si acordos, expressos ou tácitos, com o fim de explorarem em comum interesses estranhos aos seus, diz-se que a Pátria progride e está em ordem; finalmente, quando os grupos dominantes num território dado deixam de respeitar os acordos celebrados, ou porque o fim que os uniu foi atingido, ou porque surge entre eles conflitos a Pátria perturba-se e essa perturbação pode ir desde julgamento e prisões até ao emprego da força armada. E, conforme os casos, fala-se em crimes contra a segurança do estado ou em guerra civil.
- Que é o Estado?
- Estado é um pseudónimo dos grupos dominantes.
- Um trabalhador é parte integrante da Pátria?
- Não. Um trabalhador, enquanto tal, nunca é parte integrante da Pátria. A Pátria é um conjunto de interesses nobres e dignos ou de indivíduos pelos quais nós temos o dever de morrer. Ora, até hoje, ninguém defendeu que se deva morrer por um trabalhador. Logo o trabalhador está fora da Pátria.
- Quais são os deveres do trabalhador?
- Deve ser zeloso, cumpridor e obediente.
- Quais os deveres da Pátria?
- A Pátria sendo um conjunto de grupos dominantes só tem deveres para com ela própria. E, como o trabalhador está fora da Pátria os grupos dominantes não têm deveres para com o trabalhador. O trabalhador é que se deve orgulhar do prestígio e dos triunfos dos grupos dominantes.
- E se não se orgulhar?
- Não é patriota.
- Não ser patriota é uma qualidade?
- Não; é um defeito.
- Os grupos dominantes têm o dever de ser patriotas?
- Não se põe o problema de patriotismo neste caso porque os grupos dominantes são, por definição, patriotas.
- Qual o papel da religião em relação à Pátria?
- Às vezes é um sinónimo de Pátria; mas geralmente é um meio de compensação posto pela Pátria ao serviço do trabalhador.
- Como se revela este meio de compensação?
- Prometendo ao trabalhador o gozo eterno depois da morte, se ele trabalhar com paciência e resignação. Por outras palavras: fazendo ver ao trabalhador que é difícil a um rico entrar no céu, porque os que sofrem são bem-aventurados e os que têm fome serão confortados.
- Isto não dará descrédito à pátria, isto é: aos grupos dominantes?
- Não, porque a religião também diz ao trabalhador que ele deve obediência à ordem estabelecida: dai a César o que é de César.
- Quem foi César?
- César foi o heterónimo de Pátria.
- Quais são os outros heterónimos de Pátria?
- Polícia Política; Governo; Assembleia ou Parlamento; Tribunal; etc.
- Como se escreve Pátria?
- Com “P” maiúsculo.
- E trabalhador?
- Com “t…” minúsculo.
FIM

GAMA, estudante caboverdiano em Lisboa, talvez nos idos de 1955?

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