Para o meu irmão Waldemar
“Isto”
“Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com imaginação.
Não uso o coração.” – Fernando Pessoa
Saudade do Futuro
I
A palavra saudade e o seu conteúdo são considerados sem par noutras línguas. Exprime uma misteriosa multiplicidade de sentimentos. Significa, por exemplo, melancolia causada pela lembrança de um bem do qual se está privado, ou, pesar pela ausência de alguém que nos é querido. Ou ainda, a lembrança da mulher amada do velho e antigo marinheiro quinhentista (“O Mar / dentro de nós todos / no canto da morna / no corpo das raparigas morenas / nas coxas ágeis das pretas / no desejo da viagem que fica / em sonhos de muita gente” – Poema do Mar, Jorge Barbosa, poeta caboverdeano do séc. XX).
A saudade vem do português arcaico – soedade, soidade ou suidades. No latim existe a palavra solitate. Aqui, solitate tem o sentido de saudar.
Por futuro entende-se o tempo que há-de vir. Esse tempo é abstracto, porque incerto e duvidoso; pode ou não acontecer.
II
Ora, quando se fala do futuro, forçosamente, teremos de falar do passado. Comummente ouve-se dizer: “não há futuro sem passado”. Por outro lado, associa-se a saudade com o passado. Como conciliar o tempo que há-de vir com o tempo que já foi? Dito de outra forma: será possível conciliar a saudade com o futuro?
III
Temos o seguinte: a) o passado como realidade concreta e certa; b) o futuro como uma percepção daquilo que pode ou não acontecer, isto é, uma realidade abstracta e incerta.
A percepção daquilo que pode ou não acontecer tem como fundamento uma realidade concreta e certa. Será possível ter a percepção do futuro sem lançarmos raízes e aprofundar o passado? O que ficaria se o tempo que já foi deixasse de o ser? O nada! Do nada, nada se retira, senão e tão-só o tudo. Não existiria apreensão de qualquer realidade concreta e certa. Como sabem, as raízes não se fixam no vazio, consequentemente nada teríamos de aprofundar. Se não houver passado, não haverá futuro. Em suma: não existiria nem apreensão, nem percepção. Onde ficaria a saudade?
E quem anseia pelo futuro? Pretendemos ou não ter a percepção do dia que há-de vir? Ora, quem anseia pelo dia que há-de vir, terá de se fixar no passado e aprofundá-lo, porque só assim o poderá percebê-lo como realidade concreta e certa, e, partir para uma realidade abstracta e incerta.
Escutem ou leiam o que dize Gabriel Mariano a propósito de Osvaldo Alcântara – O Caçador de Heranças ou Inquietação Social, p. 172/173, in Palavra Africana, Cultura Caboverdeana – Ensaios: “De aí que os náufragos, já sem comida, na jangada limitada e solitária, tenham seguido adiante, vivendo. Vivendo de quê? Da história do rapaz torpedeado: a história sempre jovem daquele que busca a liberdade própria e alheia. (…) ”Projectou-a, dialecticamente, nos caminhos do futuro. A jangada, inicialmente, andando à tona de água, para lado nenhum, adquiriu o seu próprio movimento e encetou a sua viagem ascensional (…). Quem segue adiante, vivendo, busca o espaço futuro e o tempo futuro.”
A percepção tal como a saudade tem um factor em comum: são sentimentos.
IV
Em jeito de conclusão:
Quanto mais o pensamento anseia pelo tempo que há-de vir, mais se arreiga e aprofunda no dia que já foi, logo tenho saudades do futuro.
Ou como dizia Guerra Junqueiro: “Morre o amor, vive a suidade / Morre o sol, olha o luar”.
Ou ainda, como diz Osvaldo Alcântara no poema “Mamãi:
Mamai-Terra
disseram-me que tu morreste
e foste sepultada numa mortalha de chuva.
O que eu chorei!
(…)
Não morreste, não, Mamãizinha?
Estás apenas adormecida
para amanhã te levantares.
Amanhã, quando saíres,
eu pegarei o balaio
e irei atrás de ti.”
Queluz, 25 de Fevereiro de 2005
João Mariano
sábado, outubro 28, 2006
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário