Entrevista Dr. Gabriel Mariano efectuada pela Dr.ª Cátia Costa
PARA MIM, O MESTIÇO É QUE FOI O CRIADOR DA SOCIEDADE E DA CULTURA CABOVERDIANAS
Licenciado em direito e juíz, Gabriel Mariano notabilizou-se, também, como poeta, contista e ensaísta. O seu mérito foi reconhecido através da atribuição de vários prémios de criação literária, entre estes o último foi concedido em 1991 pela Fundação Marquês de Valle Flor. As suas obras foram traduzidas em várias línguas, como o francês, o italiano, o espanhol, o sueco e o russo. Nascido em 1928 e falecido em Fevereiro do ano passado continua a ser um dos intelectuais de referência na construção da identidade caboverdiana. Da nossa conversa, em Março de 2000, em redor do ensaio “Do Funco ao Sobrado ou o «Mundo» que o Mulato Criou” revela-se uma das suas facetas menos divulgadas: a de estudioso da formação social de Cabo Verde.
O Despertar para a Cultura Caboverdiana
Eu – Quando é que despertou o seu interesse pelo mestiço?
GM – O interesse começa enquanto estudante do liceu, o facto de ser caboverdiano e de me comparar a outros africanos despertou este interesse, surge do olhar para o meu umbigo para descobrir a diferença, tendo o interesse aumentado.
Eu – O que o influenciou mais, os autores da época [anos 40 e 50 do século XX] ou a própria realidade?
GM – As duas coisas, tive influência da revista Claridade e dos Claridosos, embora esta não fosse uma revista sociológica inseria temas sociológicos e antropológicos, só li Casa Grande e Senzala, já adulto, cá em Portugal, tal como, o Mundo que o Português Criou, notei muitas semelhanças com Gilberto Freyre, só que ele esqueceu-se de uma coisa – faz os estudos sem separar as espaços: uma coisa é o estudo do comportamento no continente africano cujos resultados foram diferentes e nos outros sítios como é o caso de Cabo Verde, Brasil e São Tomé Príncipe. Gilberto Freyre não faz a distinção.
Eu - “O mundo que o português criou ou está em vias de criar” – Nos dias de hoje, no caso de Cabo Verde, é uma sociedade em que o mulato e o negro têm a sua participação assegurada, sentido-se parte e criadores da mesma, ou há uma cópia dos valores europeus?
GM – A epxeriência de Cabo Verde é muito sui generis. Para começar inexistem preconceitos, tanto se encontra uma criada de servir branca numa casa de patrão preto como vice versa, tanto encontra brancos pobres como pretos ricos. Até lhe vou contar um motivo de finaçon da Ilha de Santiago: Luca preto dinheiro branco, chave de ouro, colete de prata... trata-se de um provérbio em crioulo sobre um agricultor preto muito rico que era do povo; é sui generis. Espanta-me a cada passo que comparo Cabo Verde a outras áreas de colonização e Cabo Verde parece um milagre e tenho a ipressão que foi graças à proliferação da mestiçagem – muito abundante no arquipélago – em extensão e os mestiços puderam ascender economicamente. Um filho mulato de um pai rico, por via de regra, arranjava também o seu pecúlio, daí que na Ilha do Fogo houvesse uma ascensão fulgurante do mulato, aliás na maioria das ilhas tal aconteceu, até porque a maioria da população é mulata; essa maioria numérica e sociológica teve as suas influências no desaparecimento de arestas, do preconceito e de pré-juízos.
A Especificidade de Cabo Verde
Eu – Para perceber a especificidade de Cabo Verde, temos de entender a identificação do conceito estético com determinada raça ou da classe social com a cor da pele ou não?
GM – Não há disso em Cabo Verde, a classe social não se identifica com a cor da pele. Em casa de meus pais tínhamos uma empregada branca e outra empregada preta, e a empregada branca dizia que trabalhava em casa de branco, ou seja, uma pessoa de classe superior. É claro notam-se nesse acto de esforçar o étnico ou rácico no estrato social reflexos de uma possível discriminação racial, cabelo bom para cabelo do tipo europeu e cabelo ruim para cabelo do tipo africano, no fundo são reflexos de um tempo em que havia efectivamente essa discriminação.
Eu – Comparando os penteados de Cabo Verde e São Tomé Príncipe, verificamos que em Cabo Verde estica-se mais o cabelo, imitando o tipo europeu. Talvez, devido a uma maior miscegenação, o conceito estético de cabelo fosse o esticado, não?
GM – Há 2 tipos de penteado: Sotavento – Santiago e o Barlavento mais parecido com penteado europeu e o do Sotavento é mais próximo do africano.
Eu – Há o relato de um inglês que, em Cabo Verde, vê uma festa em que os escravos saem para uma manifestação de batuque e em que os patriarcas assistiam à reunião. Espelha ou não que o próprio escravo tem uma posição diferente da que tem, por exemplo, numa plantação, tem um grau introsamento social maior, facilitando a integração quando se dá o abolicionismo?
GM – Nunca pensei nisso, Cabo Verde, um país pequeno, com uma população negra e uma população branca entregues a si próprias e à pobreza da terra, quando havia crise de fome todos eram apanhados e tudo isso. Eu costumo dizer que a nossa pobreza é a nossa riqueza. Se Cabo Verde não fosse pobre eu seria o indígena da costa de África, o recurso, dada a pobreza, foi o ensino, o estudo. Na primeira metade do séc. XIX criaram-se imensas agremiações culturais, sociais, criou-se um liceu na Cidade da Praia, além do seminário (1869).
Eu – Cabo Verde é uma excepção à África, nomeadamente, à África de colonização portuguesa?
GM – É uma excepção completa, da cabeça aos pés, em Cabo Verde não há uma coisa que existe, por exemplo, em África e mesmo no Brasil: a discriminação do mulato. O mulato não gosta do preto e o preto não gosta do mulato, não se entendem, e notei isso em Angola e em Cabo Verde isso é impossível, pois o mulato é maioritário, sociológica e numericamente, mas no Brasil isso ainda existe.
Eu - Como vê o caso sãotomense?
GM – Entre em São Tomé e Príncipe e Cabo Verde há uma evolução parecida, até à década de 20 do século XIX do próprio nativo, depois deu-se a corrida às roças e parou a evolução paralela a Cabo Verde. Eu estive dois anos e meio em São Tomé e Príncipe, eu não notei grandes diferenças entre sãotomenses, tinha funcionários que falavam português e falavam a língua deles. Acho que São Tomé e Príncipe está mais próximo de uma nação do que Angola ou Moçambique ou Guiné.
Eu - Poderá o colonialismo criar uma cultura nova?
GM – Pode, desde que essa cultura seja mestiça que é o caso de Cabo Verde. O colonialismo em Cabo Verde criou uma cultura nova, a mestiça, com elementos portugueses e africanos. O Cabo Verde de hoje não é o Cabo Verde de 1460, com os grupos branco e preto que tinham a sua vida própria e não tinham a vida comum, uma língua comum. O factor da língua é, para mim, um factor muito importante, para mostrar a especificidade de Cabo Verde e a sua originalidade, é uma excepção em toda a regra. Mesmo em relação ao Brasil, Cabo Verde é mais homogéneo racicamente do que o Brasil.
Eu - Não era arriscado quando um intelectual contrariava a mentalidade em vigor, incluindo os grupos de libertação dos países que rejeitavam toda a herança colonial?
GM – Era arriscado, até por causa da polícia política – PIDE (em 1959), mas bem vistas as coisas, o meu ensaio [“Do Funco ao Sobrado ou o «Mundo» que o Mulato Criou”] não minimiza a cultura portuguesa, o que houve foi a mistura, a mestiçagem, a miscigenação em todos os grupos sociais, padres, bispos, altos funcionários régios, todos tinham a sua amante preta.
Eu - Como acha que os defensores da negritude veriam uma afirmação deste tipo, perante todos os movimentos de valorização do negro e da raiz, bem como, os movimentos de libertação, apesar de estes estarem ligados ao movimento mulato?
GM – Vou citar-lhe um caso, em 1953/2, o Mário de Andrade e o Francisco Tenreiro publicaram uma antologia de poesia negra de expressão portuguesa e não incluíram os poetas caboverdianos, dando até uma explicação, a poesia de Cabo Verde era específica o que foi bem aceite, já numa segunda edição, ampliaram os critérios e incluem caboverdianos. Não senti nenhuma rejeição. Eu dizia de mim para mim: a negritude pretende valorizar aos símbolos e aos valores do homem africano, os caboverdianos tentavam valorizar a sua realidade o que acabava por ser compreendido.
Eu – O Dr. Gabriel Mariano atenta mais na liberdade de relacionamento, na falta de estruturas rígidas, no facto de existir mais iniciativa privada do que pública na gestão dos próprios relacionamentos, levando a uma maior fluidez de comportamentos... Enquanto Gilberto Freyre coloca o acento tónico no modo se ser dos portugueses, adaptando-se. Os portugueses tiveram a sorte de encontrar povos afáveis ou tudo foi um produto circunstancial, ou a identidade nacional do povo tem alguma coisa a ver com isto?
GM – Ia mais para os fenómenos circunstanciais. O ensaísta português António Sérgio diz que o que faltou ao português em Portugal foi a riqueza que encontrou no Brasil, o que permitiu criar o tal “mundinho”. A escassez de mulheres não foi um problema: a escravatura favoreceu os contactos sexuais entre escravos e portugueses; o português é um povo fortemente mestiçado, em que medida este fenómeno – porque mestiços são quase todos os povos –terá determinado a miscegenação nas colónias, ou não será apenas um produto de circunstância, a escravatura entregava a mulher negra nas mãos do branco, depois os próprios mulatos entre si também faziam filhos, eu creio que é mais um produto de circunstância, mestiço é o francês, é o inglês é o alemão, não há raças puras.
Eu - No séc. XV era comum ter escravos, o que vinha já das guerras santas, tinham-se escravos da mesma cor, apenas por serem perdedores. Não terá o factor de organização patriarcal, em grassa a escravatura, influenciado a própria aceitação desta?
GM – O Gilberto Freyre diz que em Portugal a Europa reina mas não governa, quem governa é a África... as influências sociais dos africanos – não se esqueça que o Marquês de Pombal era neto de escravos, a avó era negra – os fenómenos sociais são muito complexos e a estrutura patriarcal claro que foi levada pelos portugueses e teve a sua implantação em Cabo Verde.
Em Redor do Ensaio “Do Funco ao Sobrado ou o «Mundo» que o Mulato Criou”
Eu - Considera que a miscegenação é uma preparação na formação de uma população homogénea ou é o único meio que poderia permitir esta formação social?
GM – Não sei se poderia ter existido outro factor ou fenómeno, o que eu sei é que sem a miscegenação não teríamos o Cabo Verde que temos hoje.
Eu - Barlavento e Sotavento têm situações diferenciadas no caso da promoção social do negro, tem a ver com o isolamento, com a distribuição da propriedade?
GM – No Sotavento há uma predominância do latifúndio, no Barlavento tem predominância do minifúndio, mas eu não sinto que haja qualquer diferenciação no comportamento das pessoas.
Eu – A sua lei sociológica que diz que a fluidez e o abrandamento de vínculos, abrindo ao afro-negro outras possibilidades de cooperação, facilitou e apressou a unidade temperamental, a estabilização de padrões de cultura, a «harmonização de antagonismos», mantê-la-ia [“Do Funco ao Sobrado ou o «Mundo» que o Mulato Criou”]?
GM: Sim, manteria a lei.
Eu – Nas comunidades crioulas em Benguela, Luanda, Bolama, Zambézia (também de miscegenados), São Tomé e Príncipe, no entanto, exclui a possibilidade de o mulato auferir de uma mobilidade social semelhante à de Cabo Verde?
GM – Na altura em que escrevi o trabalho, não tinha grandes preparações em relação a outras situações que mão fossem em Cabo Verde, sabia vagamente que Luanda, Benguela eram parecidos com Cabo Verde, mas não conhecia ao fundo a realidade.
Eu – Também se surgiram sociedades crioulas noutras áreas geográficas...
GM – Na Índia, na Malásia, em Macau e há uma corrente linguística, segundo a qual os crioulos na África Ocidental de África, nas Antilhas na Ásia são de origem caboverdiana, são originários de um proto-crioulo de Cabo Verde. Eu tive uma visita de um professor de Curaçao e eu propus uma experiência, falarmos em crioulo e entendemo-nos, ele falava crioulo parecido com o de Santiago e eu falava um crioulo parecido com o do Barlavento e entendemo-nos.
Eu – Na herança biológica predomina o homem africano, mas os valores eram europeus?
GM – Mesmo os escravos aprendiam português em simultâneo com a doutrina católica o que os europeizava.
Eu - A herança biológica acaba por não determinar que a influência portuguesa seja menor que a africana?
GM – Pois não, eu desconfio muito das heranças biológicas, eu vou mais pelas heranças sociais.
Eu - Como vê a transmissão de valores da classe senhorial e da classe escrava?
GM – O responsável é a mestiçagem, a mestiçagem é o contacto, o acto sexual é contacto e isso é que gera a transmissão dos valores.
Eu - Como vê a religião na transmissão dos valores comportamentais e na formação da nacionalidade?
GM – Eu vejo a religião como o seminário e o liceu (séc. XVIII), não leccionavam apenas disciplinas religiosas, leccionavam matemática, inglês e filosofica, havia os que queriam deguir a carreira eclesiástica e outros iam para o funcionalismo público, o seminário é que é o grande alforbe das circunstâncias de ter havido uma transferência de poderes do branco para o caboverdiano, porque o funcionalismo, em Cabo Verde, desde que me conheço é preenchido pelos caboverdianos, o comércio está na mão dos caboverdianos, a terra está nas mãos de caboverdianos, um ou outro português sem significado de maior. A religião católica teve uma grande influência, graças ao seminário, pois no seminário é que se aprendia, o meu pai sabia latim que aprendeu no seminário e os padres misturavam-se com a população e faziam filhos... o padre em Cabo Verde foi um grande criador de filhos, ninguém se escandalizava, até há um ditado na Ilha de Santiago, padre é no altar, fora do altar é como outro homem qualquer.
Eu - A absorção à chegada do nativo africano é fruto da desagregação dos laços tradicionais das pessoas que chegam, o que terá alguma influência na catequização e no estabelecimento de novos comportamentos.
Nos outros países cada etnia tem uma nação e em Cabo Verde tal não acontece...
Em Cabo Verde isso não acontece, existe uma nação anterior à própria independência...a ideia de independência é fruto dessa nacionalidade ou será fruto de movimentos externos?
GM - No meu tempo de estudante de liceu, eu e os meus colegas discutíamos Cabo Verde. Havia quem dissesse que Cabo Verde não era África, tinha a sua própria nacionalidade, eu defendia que Cabo Verde tinha a sua própria personalidade e muitos defendiam isso. Nós sentíamos que éramos diferentes e essa sensação de diferença vai um passo muito curto para a independência... basta eu me sentir diferente de você para eu me afastar em termos de poder. Cabo Verde foi sempre um país de quadros, Cabo Verde não exportava só trabalhadores para São Tomé e Príncipe, exportava quadros administrativos para toda a África.
A Contestação ao Regime e ao Legado Coloniais
Eu – Esteve ligado aos movimentos ou Casa de Estudantes do Império?
GM – Eu frequentava a Casa dos Estudantes do Império, onde conheci o Cineti e outros líderes, nós discutíamos muita política na Casa de Estudantes do Império, havia a secção dos angolanos, a secção dos moçambicanos, a secção dos guineenses e a secção dos caboverdianos e todos defendiam a sua própria personalidade.
Eu – Proliferavam as ideias unificadoras em termos de pensamento ou as posições extremistas?
GM – Todos queríamos a independência...
Eu - E em relação à herança colonizadora, todos sentiam o mesmo?
GM – Havia algum holigarismo, o que era natural, estávamos numa fase de luta, tudo o que fosse herança do colonizador era para deitar a baixo. Eu recordo-me que estava a fazer uma palestra na Casa de Estudantes do Império e quando acabei, um português estava a assistir, levantou-se e propôs viva Portugal e ninguém respondeu ao viva Portugal e a sala estava cheia de gente.
Gilberto Freyre, Cabo Verde, o Crioulo e a Lusofonia
Eu – Quais são suas divergências com Freyre?
GM - Enquanto para mim o mestiço é que foi o criador da sociedade e da cultura caboverdianas, no Brasil foi mais o português o mestre da sociedade brasileira.
Eu - Freyre fez um corpo teórico a partir do espaço tropical e esse será o seu maior valor, concorda?
GM – O grande valor dele está principalmente na Casa Grande e Senzala, isso é que é uma obra capital. Apesar de eu não alinhar muito com o Gilberto Freyre quanto ao mundo que o português criou porque este mundo que o português teria criado não fornecia igualdade de oportunidades aos seus habitantes, ao branco, ao preto e ao mulato. É um mundo de desigualdade. Em Cabo Verde é o mestiço que cria esse novo mundo, no Brasil só conheço o Nordeste de que falo, mas atendendo ao facto que ainda hoje há preconceitos rácicos no Brasil...
Eu - Casa Grande e Senzala foi escrita nos anos 30 e...
GM – Em Cabo Verde, vou citar-lhe uma frase do Baltasar Lopes “Foi um alumbramento”, a Casa Grande e Senzala e as teses do GF, a ressalva que eu faço é sobre aquele mundo que o português teria ou não criado.
Eu - Mas Gilberto Freyre, quando vai a Cabo Verde não vai preparado para aquela realidade...
GM – Mas devia ir...
Eu - Uma das críticas que Gilberto Freyre faz é ...
GM – O crioulo... um cientista não pode tomar essa atitude perante a matéria que observa.
Eu - Não tem nenhuma reminisciência da visita que ele faz a Cabo Verde e daquilo que provoca?
GM – Provocou uma resposta de Baltasar Lopes, em que ele põe os pingos nos iis, refere-se inclusive a essa história do crioulo.
Eu - Ele parte do pressuposto que todos os locais onde os portugueses estiveram são idênticos...
GM - Mas isso vai em contradição com a teoria dele, pois é natural que esse mundo criado não seja uma fotocópia de Portugal. Por conseguinte o crioulo é uma criação, também, do Luso-tropicalismo.
Eu - O crioulo é tornar seu uma herança dupla, é uma das minhas dificuldades em trabalhar Freyre é o facto de ele não aceitar o crioulo...
GM – Também eu tenho esse problema... Gilberto Freyre era admiradíssimo em Cabo Verde, era um messias, como nós dizíamos, antes de escrever o livro Aventura e Rotina.
Eu – Houve a utilização ideológica da obra de Freyre pelo regime salazarista?
GM – E foi... o mundo que o português criou, o livro, do Gilberto Freyre é uma coisa boa, se fosse verdade, mas eu não posso conceber como coisa boa uma Angola tal como eu a conheci, Moçambique, São Tomé e Príncipe e como a política colonial portuguesa oficial era transformar o indígena num português, isto dito pelo Marcelo Caetano, serviram-se do Mundo que o Português Criou para provar que o colonialismo português era diferente dos outros e que era algo perfeito, Salazar e os seus capangas é que politizaram e exploraram politicamente o luso-tropicalismo.
Eu - Anos 30 e 40 do século XX, são as datas das obras referidas, mas hoje persiste uma maior preocupação com a utilização ideológica do que com a teoria... a teoria deve ser vista com um olhar ideológico ou deve ser despida do mesmo?
GM – Há aspectos que me parecem válidos, como os contactos, a miscegenação, a valorização do negro no Brasil... na realidade, o colonialismo português é diferente dos outros colonialismos, mas só no aspecto que eu frisei há bocado, na atitude que o colono português assume perante o mulato e o negro, enquanto para o inglês o mulato é o filho do demónio e do pecado, para o português não... há vários casos de portugueses que têm filhos com negras e trazem os filhos para Portugal, dão-lhes educação, um inglês não faria uma coisa dessas.
Eu - Pergunto-me se a lusofonia não será uma reedição do luso-tropicalismo?
GM – Quem sabe... agora é que há possibilidade de criar o mundo português nos trópicos, agora que há liberdade para todos que os contactos são maiores e mais intensos, agora sim pode-se criar e está-se a caminhar neste sentido. A lusofonia é como você diz...
Eu - A viragem para União Europeia e a ideia que os povos africanos são estáticos é perniciosa para este mundo em criação?
GM – Eu suponho que depende da política prática de cada país... Angola por exemplo ou Moçambique serão levados a criar uma política de aproximação com os países da África Austral, mas os países poderão enveredar pela aproximação e a comunicação entre os povos permite que isso aconteça.
Eu - Voltando ao mulato... é um elemento presente em todos os territórios de presença portuguesa, teve um papel em todos os casos?
GM – Ele teve um papel, mas foi mais limitado, nunca atingiu as proporções de Cabo Verde e esse papel deveu-se ao facto de os pais brancos reconhecerem os seus filhos mestiços.
Em jeito de conclusão...
Eu - Hoje em dia os estados independentes que tiveram colonização portuguesa ainda rejeitam a aproximação luso-tropical?
GM – Isto deve-se a terem de negar a herança colonial para justificarem as independências. A guerra colonial aumentou esse fosso e essa necessidade de negação. A negação tem um carácter mais político do que sociológico.
Eu - A união de Cabo Verde à Guiné-Bissau, proposta na década de sessenta, seria uma tentativa de africanização do arquipélago?
GM – Não vou por esse lado... Amílcar Cabral tinha nascido em Cabo Verde, foi criado em Cabo Verde, conhecia Cabo Verde e a Guiné, sabia que precisava dos quadros caboverdianos e que o arquipélago lhe podia dar isso, porque os caboverdianos sentiam-se diferentes dos guineenses, havia até um certo desentendimento, mas a conjuntura permite a esta aproximação... no entanto a realidade fala por si. A unidade de facto nunca esteve na mente dos caboverdianos, esteve sim no sentir daqueles que lutaram ao lado de Cabral que viviam na Guiné, mas não dos outros.
Eu - Cabo Verde é hoje um exemplo de um especial modo de estar no mundo português ou o caboverdiano é que tem uma forma diferente e especial de ser face aos restantes povos?
GM – É a segunda, sem dúvida que é o povo caboverdiano que se auto-criou.
sábado, outubro 28, 2006
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